quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Visconti abandona o seu passado

Luchino Visconti foi, junto aos seus amigos Vitorio deSicca e Roberto Rosselini, expoente principal da estética neo-realista de cinema que surgiu no cenário italiano do pós-guerra. Essa corrente foi fruto da necessidade em se denunciar a grande disparidade social e a crise econômica, e subseqüentemente social, que dominaram a região naqueles tempos. Seguidores das teorias do francês André Bazin, os neo-realistas faziam um cinema que se distanciava do maniqueísmo e das tramas ilusórias que predominavam desde a gênese do cinema para se aproximar da realidade.
Para atingir esse grau de realismo algumas técnicas se tornaram sine qua non nesse segmento cinematográfico, como o mise-en-scéne, a utilização de pessoas comuns no lugar dos atores e a diminuição no uso da edição. Em alguns estudos Luchino Visconti figura como o autor do primeiro filme neo-realista, o drama familiar “Obsessão” de 1943, para outros esse filme não pode ser considerado como tipicamente neo-realista, dentro dessa perspectiva o filme que realmente estréia essa estética seria “Roma: Cidade Aberta” de Roberto Rosselini, lançado em 1945.
Enquanto diretor neo-realista Visconti é visto como atípico por recorrer a uma certa dicotomia ética que naturalmente era evitada nesse cinema. O espectro maniqueísta trouxe para o seu cinema uma aceitação popular mais larga do que a recebida pelos seus companheiros neo-realistas, no entanto grande parte da crítica o iguala pejorativamente ao autor brasileiro Jorge Amado, com a sua natural propensão em beatificar os pobres e em demonizar os ricos.
Dentre as suas obras neo-realistas destacam-se os filmes: “Belíssima”, “A Terra Treme” e “Rocco e seus Irmãos”. O filme “Morte em Veneza” quase não traz resquícios do cinema neo-realista, sendo considerado a segunda parte da Trilogia Alemã, composta também por “Ludwig- A Paixão de um Rei” de 1973, e por “Os Deuses Malditos” de 1969. Os filmes da trilogia alemã mostram um Visconti menos sociológico, mais intimista e requintado. Essas obras quebram completamente com os preceitos neo-realistas de diminuição de cortes e enfoque em temas sociais. O Visconti diretor de “Morte em Veneza” se utiliza de planos subjetivos, de uma edição bem planejada e da utilização de grandes atuações e de efeitos de luz e enquadramento.
O filme, que é uma adaptação do livro homônimo de Thomas Mann, conta a história do compositor Gustav Aschenbach, que, durante uma viagem à Veneza, se apaixona pelo jovem Tadzio, um adolescente surrealmente belo de origem presumidamente grega. Enquanto delira com a sua paixão, Gustav é infectado pela epidemia que chega à cidade, e passa seus últimos dias à beira da loucura divagando sobre suas concepções de amor, de beleza e de criação artística.
O polêmico livro de Thomas Mann, que chegou a ser acusado de pedofilia devido a essa obra, ressurgiu na visão delicada de Visconti, que, muito cuidadosamente, consegue segurar seu filme num patamar de apreciação e discussão filosófica, sem recair na vulgaridade da natureza da relação entre os seus protagonistas. Todo o grandioso embate que ocorre no espírito do cinqüentenário Gustav é apresentado sob uma superfície plácida, e a sua paixão é facilmente justificada pela visão poética que Visconti extrai da figura de Tadzio. Aí reside a maior curiosidade técnica do filme, para justificar a alucinação de Aschenbach, Visconti abusa na direção calculada, com uma fotografia impecável, uma produção bastante detalhista, além da edição e dos enquadramentos exaustivamente planejados. Muito do mérito do filme também se deve à escalação do jovem polonês Björn Andrésen para o papel de Tadzio, a beleza e o carisma do jovem consegue tornar a concepção da pedofilia da personagem de Dirk Bogarde suficientemente pura. O diretor consegue aproveitar os perfis do jovem ator de uma maneira extraordinária, tornando a figura de Tadzio naturalmente apaixonante para um senhor de cinqüenta anos sem atrair repulsa por parte do público. Dirk Bogarde também é um destaque, representando um compositor absolutamente reacionário na sua visão do processo de criação artística, a sua caracterização remete à figura do compositor Gustav Mahler, e a trilha do filme, inteiramente retirada de músicas de Mahler, corrobora essa similitude.
A utilização de elementos da cultura clássica e também da renascentista, como na cena em que Tadzio vaga envolto em uma toalha branca pela praia, ou na melodia de ópera suavemente cantada na última cena do filme, são provas do classicismo estético da película que a diferencia do neo-realismo. Essa ruptura também fica clara nos planos-sequência no momento em que Aschenbach vê Tadzio pela primeira vez no salão de jantar, grande parte deles usando o efeito de câmera subjetiva. O mise-en-scéne é utilizado muito discretamente em algumas cenas de Tadzio na praia, primordialmente nos momentos em que o diretor explora o sentimento de culpa do compositor Gustav.
Morte em Veneza” é um filme de um diretor neo-realista onde ele quebra com a própria corrente estética para contar uma história da única forma pela qual ela poderia ser contada, com muito cuidado, requinte e manipulação estética, para conseguir dar vida à prosa poética de Thomas Mann. O filme é bastante bem-recebido pela crítica e foi o vencedor do Festival de Cannes de 1971, sendo constantemente citado como exemplo de bom gosto. Certamente ele não figura como melhor representante do típico cinema deste diretor, mas é facilmente apontado como melhor obra de Visconti.
por Marcones Sá

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Entre a IRA e o desejo


O irlandês Neil Jordan é possivelmente um dos melhores diretores em atividade. Suas tramas vão de um engajamento político, retratando as ações do IRA (Exército Republicano Irlandês) até a abordagem de temas humanos e universais como o amor e a amizade. Embora alguns de sus filmes dos anos 80 sejam sempre lembrados, como A Companhia dos Lobos e Não Somos Anjos, foi apenas em 1992 que a crítica internacional se rendeu ao talento de Jordan com Traídos Pelo Desejo (The Crying Game).

Considerado por muitos como um dos mais importantes e originais filmes da década, Traídos Pelo Desejo possui um roteiro minucioso e detalhista que sugere ao espectador uma trama sobre um seqüestro político, mas de repente, transforma-se em uma sensível história de amor abordando o desejo, a culpa e o remorso. Ao dar destaque ao famoso mito da rã e do escorpião, o roteiro também faz uma alusão ao amor como força da natureza e não como escolha individual. Polêmico e surpreendente, a trama reserva uma agradável surpresa na conclusão, analisado por muitos críticos de cinema como um dos melhores finais já realizados.

Em uma performance marcante, o companheiro indispensável do cineasta, Stephen Rea, demonstra uma honestidade nas emoções da personagem, o mesmo se aplica a Jaye Davidson com uma atuação complexa e ambígua. Ambos foram, merecidamente, indicados ao Oscar. Aliás, a Academia se rendeu a qualidade de Traídos Pelo Desejo, premiando-o com a estatueta de melhor roteiro original, além de ser indicado em outras cinco categorias, inclusive melhor filme, prêmio perdido para Os Imperdoáveis de Clint Eastwood.

A fama e o prestígio alcançado por Neil Jordan proporcionou ao cineasta a entrada em Hollywood e a realização do seu maior sucesso comercial, Entrevista Com O Vampiro (1994), baseado no best-seller homônimo de Anne Rice, retratando temas como o existencialismo e a ambigüidade sexual. Depois de produções menores como Michael Collins – O Preço da Liberdade (1996) e A Premonição (1998), o diretor foi novamente elogiado pela crítica no filme Fim de Caso (1999), adaptação do escritor inglês Graham Greene. Seu último projeto, Café da Manhã em Plutão (2005), foi bem recebido, mas ficou reduzido ao circuito alternativo tanto nos EUA como no Brasil.


por Leandro Gantois

domingo, 13 de maio de 2007

Os demônios de Truffaut



O caos, o desespero... a incompreensão

Mikhail Kalatozof, cineasta russo muito famoso em seu país de origem, nunca imaginaria que o prestigio de ganhar a Palma de Ouro em 1957, possibilitaria o produtor Ignace Morgenstern realizar o primeiro longa-metragem do genro, um jovem cineasta francês. Muito menos, que esse mesmo jovem, viria se tornar um dos mentores de uma corrente que revolucionaria a cinematografia francesa: a Nouvelle Vague.
Lançado em 1959, Os Incompreendidos (Les Catre Cents Coups), marcou a estréia de François Truffaut na direção de cinema. Marcou também, a projeção internacional do movimento de cinema novo francês, pregando o cinema autoral, barato, e expressando o desejo de mudança na realização de filmes comerciais no país do cinema.
No livro, Los Cuatrocientos Golpes*, a pedagoga espanhola, Esther Gispert, faz um complexo estudo crítico sobre o filme quase autobiográfico de Truffaut, analisando as entranhas da psique do personagem Antoine Doinel, alter-ego do cineasta.
Esther relata que, antes de ser apadrinhado pelo crítico André Bazin, um dos fundadores da revista Cahiers du Cinema, a mesma que ajudaria Truffaut a se tornar um dos maiores críticos que o mundo já leu, o cineasta viveu uma vida difícil, assim como seu personagem. François, que como Antoine, nasceu em Paris, não era bem quisto no seio de sua conservadora família. Não tratado, como ele próprio descreve, encontrou refúgio nas salas da cinemateca francesa, onde fez escola. Uma vida marcada por incertezas.
Para compor o texto de seu primeiro filme Truffaut escalou Marcel Moussy, importante roteirista da época, que desenhou os diálogos os quais, no roteiro original, estavam a cópia fiel da vida do diretor francês. A exemplo da figura materna do filme, que é fria, indiferente e autoritária, reflexo da conturbada relação de François com a mãe. Os incompreendidos é uma mescla de conflitos de causa – conseqüência, onde cada ação remete a anterior, e, por conseguinte, à posterior.
A vida de Antoine Doinel é uma teia, formada unicamente por agentes externos os quais confundem o personagem, levando-o a um desfecho trágico, ao mesmo tempo catártico. A redenção, tão bem maquiada pelo cineasta, transmite a idéia de um final feliz. Doinel, em sua corrida frenética em direção ao mar, realiza o sonho da liberdade incondicional, liberdade essa, que lhe foi roubada muito cedo. Mas, assim que volta à areia, por um momento, por uma fração de segundo, olha pra câmera que congela, revelando um rosto aflito, angustiado, perdido. É o grito de Truffaut, expurgando os demônios que o acompanharam ao longo da vida. A incompreensão, o descaso, a falta de afeto.
O filme é o retrato de uma juventude amarga, repreendida em sua própria fantasia. Jean – Pierre Léaud, que interpreta a personagem de Antoine, leva a cabo a responsabilidade de iniciar uma saga. Uma história que só teve desfecho concreto com a morte de seu criador, em 1984.

por Pedro Diniz


* Los cuatrocientos golpes – Les catre cents coups: estudio critico de Esther Gispert
Ed. Paidós Barcelona – Espanha

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Porque sisudez não é sinônimo de inteligência...

"Um cinema intelectual corre o risco de se tornar seco e abstrato... mas tem maiores chances de ser sincero..." François Truffaut