
Para atingir esse grau de realismo algumas técnicas se tornaram sine qua non nesse segmento cinematográfico, como o mise-en-scéne, a utilização de pessoas comuns no lugar dos atores e a diminuição no uso da edição. Em alguns estudos Luchino Visconti figura como o autor do primeiro filme neo-realista, o drama familiar “Obsessão” de 1943, para outros esse filme não pode ser considerado como tipicamente neo-realista, dentro dessa perspectiva o filme que realmente estréia essa estética seria “Roma: Cidade Aberta” de Roberto Rosselini, lançado em 1945.
Enquanto diretor neo-realista Visconti é visto como atípico por recorrer a uma certa dicotomia ética que naturalmente era evitada nesse cinema. O espectro maniqueísta trouxe para o seu cinema uma aceitação popular mais larga do que a recebida pelos seus companheiros neo-realistas, no entanto grande parte da crítica o iguala pejorativamente ao autor brasileiro Jorge Amado, com a sua natural propensão em beatificar os pobres e em demonizar os ricos.
Dentre as suas obras neo-realistas destacam-se os filmes: “Belíssima”, “A Terra Treme” e “Rocco e seus Irmãos”. O filme “Morte em Veneza” quase não traz resquícios do cinema neo-realista, sendo considerado a segunda parte da Trilogia Alemã, composta também por “Ludwig- A Paixão de um Rei” de 1973, e por “Os Deuses Malditos” de 1969. Os filmes da trilogia alemã mostram um Visconti menos sociológico, mais intimista e requintado. Essas obras quebram completamente com os preceitos neo-realistas de diminuição de cortes e enfoque em temas sociais. O Visconti diretor de “Morte em Veneza” se utiliza de planos subjetivos, de uma edição bem planejada e da utilização de grandes atuações e de efeitos de luz e enquadramento.
O filme, que é uma adaptação do livro homônimo de Thomas Mann, conta a história do compositor Gustav Aschenbach, que, durante uma viagem à Veneza, se apaixona pelo jovem Tadzio, um adolescente surrealmente belo de origem presumidamente grega. Enquanto delira com a sua paixão, Gustav é infectado pela epidemia que chega à cidade, e passa seus últimos dias à beira da loucura divagando sobre suas concepções de amor, de beleza e de criação artística.
O polêmico livro de Thomas Mann, que chegou a ser acusado de pedofilia devido a essa obra, ressurgiu na visão delicada de Visconti, que, muito cuidadosamente, consegue segurar seu filme num patamar de apreciação e discussão filosófica, sem recair na vulgaridade da natureza da relação entre os seus protagonistas. Todo o grandioso embate que ocorre no espírito do cinqüentenário Gustav é apresentado sob uma superfície plácida, e a sua paixão é facilmente justificada pela visão poética que Visconti extrai da figura de Tadzio. Aí reside a maior curiosidade técnica do filme, para justificar a alucinação de Aschenbach, Visconti abusa na direção calculada, com uma fotografia impecável, uma produção bastante detalhista, além da edição e dos enquadramentos exaustivamente planejados. Muito do mérito do filme também se deve à escalação do jovem polonês Björn Andrésen para o papel de Tadzio, a beleza e o carisma do jovem consegue tornar a concepção da pedofilia da personagem de Dirk Bogarde suficientemente pura. O diretor consegue aproveitar os perfis do jovem ator de uma maneira extraordinária, tornando a figura de Tadzio naturalmente apaixonante para um senhor de cinqüenta anos sem atrair repulsa por parte do público. Dirk Bogarde também é um destaque, representando um compositor absolutamente reacionário na sua visão do processo de criação artística, a sua caracterização remete à figura do compositor Gustav Mahler, e a trilha do filme, inteiramente retirada de músicas de Mahler, corrobora essa similitude.
A utilização de elementos da cultura clássica e também da renascentista, como na cena em que Tadzio vaga envolto em uma toalha branca pela praia, ou na melodia de ópera suavemente cantada na última cena do filme, são provas do classicismo estético da película que a diferencia do neo-realismo. Essa ruptura também fica clara nos planos-sequência no momento em que Aschenbach vê Tadzio pela primeira vez no salão de jantar, grande parte deles usando o efeito de câmera subjetiva. O mise-en-scéne é utilizado muito discretamente em algumas cenas de Tadzio na praia, primordialmente nos momentos em que o diretor explora o sentimento de culpa do compositor Gustav.
“Morte em Veneza” é um filme de um diretor neo-realista onde ele quebra com a própria corrente estética para contar uma história da única forma pela qual ela poderia ser contada, com muito cuidado, requinte e manipulação estética, para conseguir dar vida à prosa poética de Thomas Mann. O filme é bastante bem-recebido pela crítica e foi o vencedor do Festival de Cannes de 1971, sendo constantemente citado como exemplo de bom gosto. Certamente ele não figura como melhor representante do típico cinema deste diretor, mas é facilmente apontado como melhor obra de Visconti.
por Marcones Sá